LETRAS
‘Transpenumbra
do Armagedom’:
distopia
depois de uma hecatombe
Adelto
Gonçalves (*)
I
Autor de livros polêmicos
e diferenciados, Silas Corrêa Leite (1952), depois de publicar Ele está no
meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial), em 2018, O Marceneiro: a
última tentativa de Cristo (Maringá-PR, Editora Viseu), em 2019, e Cavalos
selvagens (Taubaté, Letra Selvagem; Curitiba, Kotter Editorial), em 2021,
surpreende seus leitores com Transpenumbra do Armagedom (São Paulo,
Desconcertos Editora, 2021), obra em que, mais uma vez, mistura gêneros e
estilos, fazendo com que a crítica fique em dificuldades para defini-la.
Na
verdade, trata-se de uma reunião de textos que vão do romance de ficção científica
a contos futuristas e crônicas minimalistas, passando por poemas de cunho
libertário. Enfim, uma obra que traz uma visão épica e fantástica de um futuro
que se desenha para o planeta Terra e que se avizinha como assustador.
O autor reconhece que procurou fazer
uma literatura de ficção futurista baseado na new weird fiction, (que
pode ser traduzida como “ficção esquisita”), estilo que produz criaturas
mutantes, personagens que não são totalmente humanos, que surgiu na década de 1990
com a ideia de subverter conceitos, combinando elementos da ficção científica,
horror e fantasia, não seguindo convenções ou exemplos estereotipados. Um
gênero que anuncia a chegada da distopia, também denominada cacotopia ou
antiutopia, que representa a antítese do que se lê em Utopia, do
escritor inglês Thomas Morus (1480-1535), onde um governo, organizado da melhor
maneira, proporciona ótimas condições de vida a um povo equilibrado e feliz.
Ou seja, distopia é qualquer
representação ou descrição, organizacional ou social, de uma utopia negativa,
às avessas. No caso da obra de Silas Corrêa Leite, o termo procura reconstituir
um lugar, época ou estado imaginário em que se vive sob condições de extrema
opressão, desespero ou privação, prenunciando o que seria o pós-mundo governado
por regimes totalitários e vivido por populações degradadas e submetidas ao
controle de uma tecnologia voltada apenas para o mal.
Em outras palavras: aos elementos
tradicionais da ficção científica, esse novo gênero procura agregar romance
histórico, personagens reais, faroeste, diários de viagem, novela policial noir,
com o objetivo de libertar a literatura fantástica dos clichês que infestam
hoje as prateleiras das livrarias que restam. Apesar de toda essa bizarrice, as
descrições que são vistas na new weird fiction se utilizam de palavras
estranhas, termos inventados e analogias bizarras, como se fossem reproduzidas
de um pesadelo. Perfeitamente adaptado a esse novo gênero, nesta obra, seu primeiro
livro de fantástica ficção científica, o autor consumiu mais de dez anos.
II
Como observa o editor Claudinei
Vieira, “o mundo de Silas Corrêa Leite é um amálgama de cenários
pós-apocalípticos, alta tecnologia e limites morais, sociais, sexuais
completamente indefinidos, interligados, complexados. “É um universo muito
distante. E, ao mesmo tempo, definitivamente próximo e reconhecível”, diz. E
acrescenta: “Posso não saber como classificá-lo, mas uma coisa sei com certeza:
é um livro espetacular. Uma viagem intrincada, vertiginosa, imperdível”.
Como exemplo, leia-se este trecho: “(...)
São esses supermercados subterrâneos, essas igrejinhas nos ares, esses
farmaciassítios, esses açougues de almas, e esses soberbos condomínios de
burgueses hostis que bancam e financiam o câncer desse governo sectário,
fascista e tendencioso, por conta de antropoides especuladores do sórdido
capital sujo. – Fale baixo, Penélope, fale baixo, que você, com essa cara de Celly
Campelo com dengue, ainda vai ver seu disquinho historial sofrer adulteração
raqueada. E você vai ter que rebolar e arrumar outro codinome para parecer meia
porção de gente, com essa sua siliconada bundinha murcha de câmera de bola de
futebol. E vai ter que pentear macacos no laboratório de inseminação de símios
treinados para serem serviçais de agentes carniças que não são desse mundo
(...)”.
Ou ainda este trecho surreal: “(...)
Altas tecnologias de ponta e todas top de linha, só para suntuosas cidades satélites
de ricaços residentes. Eles que são elos. Nós aqui estamos e somos os novos
campos tipo Auschwitiz e Treblinka, para dizer o mínimo.... – Pois é, mas volta
e meia, a gente bota fogo na canjica, sobe clandestinamente e camuflado para as
altas bordas, num Cavalo de Troia ou não, vai lá de supetão e traz um refém
posudo e pimpão, um burguês macarrônico. E então negocia uma felação premiada,
uma devolução calculada no muque como bagre cego no mercado das pulgas, e
consegue um novo reator, um plug atípico, um chip quizilento, um torno, uma
muda de laranja negra, uma válvula hidrante do tempo dos cardumes, um piloto
gerador, um desfibrilador de úteros rompidos. Um pendrive de suturas... E assim
vamos montando nossos jipes Nirvanas, nossas naves secretas de rebelião
assistida (...)”.
Por aqui se vê que a literatura
fantástica de ficção científica de Silas Corrêa Leite, com a presença de
neologismos, palavras estranhas, termos inventados ou tirados do dia a dia da
atual onda informática, busca romper todas as regras e tradições de um modelo
de se escrever romances ou contos. E procura anunciar um fim de mundo que
parece estar cada vez mais próximo. Ao incrédulo leitor só resta conferir.
III
Nascido em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba,
no Paraná, e tendo vivido sua juventude na mítica cidade paulista de Itararé,
localizada na divisa entre os Estados de São Paulo e Paraná, Silas Corrêa Leite
é poeta, romancista, letrista, professor, desenhista, jornalista, resenhista, ensaísta,
conselheiro diplomado em Direitos Humanos e membro da União Brasileira de
Escritores (UBE), além de blogueiro e ciberpoeta.
Tendo começado a escrever aos 16 anos, migrou
em 1970 para São Paulo, onde se formou em Direito e Geografia, sendo
especialista em Educação pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de ter
cursado extensões e pós-graduações nas áreas de Educação, Filosofia,
Inteligência Emocional, Jornalismo Comunitário e Literatura na Comunicação,
curso este que fez na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de
São Paulo (USP).
Nos últimos tempos, o romancista lançou também Gute-Gute, barriga experimental de
repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do Rio Itararé
(Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013), romance pós-moderno, considerado
a sua melhor obra; Tibete, de quando você não quiser ser
gente, romance (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017);
e O lixeiro e o presidente (Curitiba, Kotter Editorial, 2019), romance
social,
Como poeta e ficcionista, consta de
mais de 100 antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue
de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália, Christmas Anthology,
de Ohio, Estados Unidos, e Revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. Seu
texto “O estatuto do poeta” foi vertido para o espanhol, inglês, francês e
russo.
É
autor do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O rinoceronte de
Clarice, que reúne onze ficções, cada uma com três finais, um
feliz, um de tragédia e um terceiro politicamente incorreto, que virou tema de tese de mestrado na
Universidade de Brasília (UnB) e de doutoramento na Universidade Federal de
Alagoas (UFAL). Foi finalista do Prêmio Telecom, em Portugal, em 2007. É
autor ainda, entre outros, de Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora
All-Print) e Campo de trigo com corvos, contos (Joinville-SC, Editora
Design, 2005), obra finalista do prêmio Telecom, Portugal 2007, e O homem que
virou cerveja, crônicas hilárias de um poeta boêmio (São Paulo, Giz
Editorial, 2009), livro ganhador do Prêmio Valdeck Almeida de Jesus, Salvador-Bahia,
2009.
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Transpenumbra do Armagedom, de Silas Corrêa Leite. São Paulo: Desconcertos
Editora, 146 páginas, R$ 50,00, 2021. Site: www.desconcertoseditora.com.br E-mail:
desconcertos@gmail.com Site do autor: poetasilascorrealeite.com.br E-mail do
autor: poesilas@terra.com.br
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(*) Adelto Gonçalves,
jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os vira-latas da madrugada
(José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o
poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br